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A regulamentação do Tratado de Marraqueche está em consulta pública

por FEBAB
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FEBAB/CBDA3, abril 2020

FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE ASSOCIAÇÕES DE BIBLIOTECÁRIOS, CIENTISTAS DA INFORMAÇÃO E INSTITUIÇÕES

COMISSÃO BRASILEIRA DE DIREITO DE AUTOR E ACESSO ABERTO

Está em consulta pública o texto do Decreto que regulamentará o Tratado de Marraqueche no Brasil. Esse Tratado, assinado em 2013 e promulgado no Brasil em 2018 (Decreto n. 9.522/2018), deixou algumas possibilidades abertas para a livre escolha dos países signatários e, por causa disso, o Decreto de regulamentação que está em consulta pública é crucial, já que é por meio dele que o Estado Brasileiro irá fazer importantes escolhas, adaptando o Tratado à realidade nacional.

Acompanhe dia 08 de maio de 2020 às 15 horas o Webinar:  Por que devemos participar da consulta pública sobre o Tratado de Marraqueche no Brasil?

Trata-se, portanto, de um momento singular para todos os profissionais da informação preocupados com o debate sobre políticas públicas de acessibilidade onde terão a oportunidade de participar da discussão do instrumento legal mais relevante na promoção do acesso ao conteúdo de qualquer obra publicada para pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades (por ex., pessoas com tetraplegia ou dislexia).

O Tratado impõe uma nova Limitação ao Direito Autoral, por meio da criação de um Direito para as pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades que as impeçam de utilizar plenamente uma obra publicada. Sem necessidade de autorização prévia e sem necessidade de pagamento aos titulares de qualquer obra, os beneficiários e/ou as entidades autorizadas poderão reproduzi-las mesmo que estejam protegidas por direitos autorais, sempre com o intuito de convertê-las em um formato acessível que melhor atenda às necessidades do usuário. Além disso, as entidades autorizadas poderão promover o trânsito transfronteiriço de obras que já estejam convertidas para formatos acessíveis em outros países, facilitando ainda mais o acesso.

As bibliotecas são descritas no Decreto como um exemplo de entidade autorizada e poderão se cadastrar para atuarem como intermediárias do beneficiário no exercício pleno de seu direito. Cadastrada, a biblioteca poderá:

  • solicitar uma cópia de alguma obra que tenha sido convertida para formato acessível por outras entidades autorizadas. Isso contribuirá para o acesso dos beneficiários (pessoas cegas, com deficiência visual e com outras dificuldades), mesmo se a biblioteca não for especializada em obras em formatos acessíveis.
  • atuar diretamente na conversão de obras para o formato acessível, criando um acervo próprio e amparando outras entidades autorizadas na promoção do acesso dos beneficiários.

Os profissionais da informação, especialmente os bibliotecários, passarão a lidar diretamente com esses usuários, auxiliando-os no uso das obras em formatos acessíveis, garantindo o acesso a obras já acessíveis mesmo que disponíveis fora de seu acervo e/ou contribuindo para a conversão, para o formato acessível, das obras que estejam em seu acervo. Desse modo, enquanto gestores de entidades autorizadas, os bibliotecários e demais profissionais da informação também serão afetados pela regulamentação do Tratado, motivo mais que suficiente para que participemos do debate.

A redação deste Decreto ora em consulta pública, foi previamente debatida por um Grupo de Trabalho organizado pela Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (SDAPI) nos meses de outubro a dezembro de 2019. Dentre os participantes, estavam presentes especialistas e entidades públicas e privadas representando a própria Secretaria, editoras, associações e institutos envolvidos com pessoas cegas e a FEBAB representando o segmento bibliotecas.

A FEBAB, presente por membros da Comissão Brasileira de Direitos de Autor e Acesso Aberto (Sueli Mara S. P. Ferreira e Walter Ellen do Couto), reafirmou o seu compromisso em defesa das bibliotecas, dos usuários de bibliotecas e demais instituições de informação, se posicionando para fazer cumprir sua missão de promover o acesso amplo e irrestrito a todos.

Reafirmou-se nosso respeito aos Direito dos Autores e dos titulares das obras que estejam em domínio privado, mas relembrando sempre que os usuários (denominados beneficiários no Decreto) dessas obras também possuem direitos. Os Direitos dos Usuários limitam intrínseca e extrinsecamente o Direito dos Autores, fazendo a relação dos usuários e dos criadores ser mais equilibrada. Isso ocorre em função do interesse coletivo da sociedade, que é a promoção da cultura e das ciências e não o seu impedimento por meio de um suposto direito absoluto. Não há direitos absolutos em nosso ordenamento jurídico, o que também se aplica aos direitos dos autores, limitados pelos direitos dos usuários. O caso do acesso de pessoas cegas, deficientes visuais e com outras dificuldades de leitura é um exemplo clássico de direito de usuário que limita o direito do autor.

Muitos pontos do Decreto foram pacificados na fase preliminar de debates, porém outros pontos se tornaram naturalmente objeto de controvérsia, dada a realidade de cada parte interessada. A Consulta Pública servirá, principalmente, para que os cidadãos se posicionem em relação a esses pontos. A FEBAB gostaria de convidar os bibliotecários, profissionais da informação e demais interessados a opinar na consulta pública, principalmente em relação aos pontos que considera mais relevantes, como em relação à cláusula de disponibilidade comercial.

Por que a FEBAB é veementemente contra a “cláusula de disponibilidade comercial”?

cláusula de disponibilidade comercial é a possibilidade de os países signatários do Tratado de Marraqueche condicionarem a sua aplicação para obras que ainda não estejam disponíveis comercialmente em formato acessível e em condições razoáveis.

Desse modo, se a entidade autorizada quiser converter uma obra para o formato acessível para atender a um beneficiário, precisará consultar algum catálogo nacional (contendo a descrição de todas as obras disponíveis no país) para saber se a referida obra já está sendo comercializada naquele formato e em condições razoáveis de acesso. Se estiver disponível comercialmente, o usuário não poderá utilizar o direito que o Tratado lhe garante, pois a cláusula de disponibilidade comercial irá impedi-lo.

Esta previsão está no Art. 4°, item 4, do Tratado de Marraqueche, e, se aplicada, funciona como uma “limitação da limitação”, pois estabeleceria limites para um direito do usuário beneficiário (como as pessoas cegas e os deficientes visuais) em função dos direitos dos autores; ainda que o direito do beneficiário tenha sido originalmente criado no Tratado exatamente para estabelecer um limite extrínseco aos direitos do autor. Há vários motivos para sermos contrários à adição desta cláusula, dentro os quais, destacam-se:

1 – Dificuldade de definir universalmente o que é uma “obra em formato acessível”.

O Tratado estabelece que o beneficiário deve ter plenos direitos de acesso às obras publicadas e que a condição desse acesso seja similar à condição de acesso das pessoas sem deficiência e/ou outras dificuldades. A cláusula da disponibilidade comercial dificultaria a individualização do atendimento aos beneficiários, que, por serem de espectro muito amplo, possuem necessidades diversas. Assim, a existência de uma obra em um formato acessível específico que atenda apenas parcialmente o beneficiário poderia justificar de maneira prejudicial e errônea a não conversão da obra para um formato plenamente acessível que atendesse integralmente aquele beneficiário individualizado. Imagine-se a seguinte situação: uma editora disponibiliza comercialmente uma obra e diz que ela é acessível para pessoas com autismo e dislexia; no entanto, o bibliotecário, ao cotejar a obra com um usuário autista que possui dificuldade de leitura constata que aquela obra não atende às especificidades do usuário – o autismo ocorre um espectro muito variável. A situação gera uma insegurança jurídica para os bibliotecários: quem irá definir quando uma obra está ou não em formato acessível compatível com a necessidade do usuário, a entidade autorizada que lida diretamente com o usuário ou o titular do direito de autor? Entendemos que a mera possibilidade de litígio desestimularia algumas entidades autorizadas a realizarem a conversão da obra, prejudicando injustificadamente os legítimos direitos dos beneficiários do Tratado.

2 – Dificuldade de definir o que seriam as “condições razoáveis de acesso”.

A cláusula diz que a disponibilidade comercial só ocorreria se a obra estivesse disponível em formato acessível e em condições razoáveis de acesso. Novamente, a mera dúvida sobre o que é essa “condição razoável” de acesso e quem iria defini-la gera insegurança para as entidades autorizadas, desestimulando a sua atuação como intermediárias do direito dos beneficiários. Muitas obras em formatos acessíveis dependem de aparatos tecnológicos para o seu uso, o que também configuraria hipótese condicional de razoabilidade de acesso, porque a mera disponibilidade da obra para a venda não significa que o beneficiário poderá utilizá-la, caso não tenha o recurso tecnológico que as bibliotecas possuem. Se uma editora que comercializa a obra alegar que ela está disponível em condições razoáveis, mas a entidade autorizada (como uma biblioteca) entender que as condições, para o seu usuário, não são razoáveis, quem irá decidir quem está certo? Provavelmente a questão iria para a justiça, o que, por si só, desestimularia as bibliotecas no atendimento pleno dos beneficiários.

– O espírito do Tratado não é a formação de um mercado, mas a garantia de um direito.

Argumenta-se que esta cláusula é importante para fomentar o mercado editorial das obras acessíveis no Brasil, o que justificaria a sua adição. A FEBAB lembra que o Tratado de Marraqueche não tem o objetivo de fomentar um mercado editorial, mas sim estabelecer um direito ao usuário com dificuldade e/ou deficiência visual. Entendemos, portanto, que não é o local e nem o momento de debater o fomento ao mercado editorial de obras acessíveis, mas sim o de garantir o direito dos usuários (no caso, os beneficiários já mencionados) de acessarem essas obras independentemente de autorização prévia dos titulares.

4 – A cláusula geraria insegurança no principal avanço do Tratado, que é o intercâmbio transfronteiriço.

Não está claro como essa cláusula afetaria o intercâmbio das obras entre as entidades autorizadas de diferentes países. Por exemplo, se uma obra estiver comercialmente disponível em formato acessível no Brasil, isso poderá impedir as entidades autorizadas nacionais de realizarem intercâmbio dessa mesma obra em formato acessível que tenha sido adaptada fora do país, onde eventualmente não há essa cláusula? Se a resposta for positiva, as entidades autorizadas nacionais perderiam muito ao terem o direito de realização do intercâmbio transfronteiriço limitado, porque ele é um dos principais avanços do Tratado, especialmente para as bibliotecas, tradicionais gestoras de grandes acervos.

5 – A ausência da cláusula não afeta a Regra dos Três Passos da Convenção de Berna.

Como o próprio Tratado estabelece na Nota de Rodapé n. 5, a cláusula de disponibilidade comercial não pressupõe alinhamento direto com a regra dos Três Passos da Convenção de Berna. Esta regra estabelece os mínimos convencionais para os países criarem limitações aos direitos autorais. A FEBAB entende que, mesmo na interpretação direta das Regras, a ausência da cláusula é autorizada por elas. Segundo as Regras, a limitação ao direito autoral só é legítima:

  1. a) em certos casos especiais. A FEBAB entende, seguindo teoria jurídica consagrada, que em nosso sistema legal (romano-germânico) a inclusão da limitação apenas para o caso das pessoas que possuem dificuldades de acesso aos textos em condições idênticas às pessoas que não possuem nenhuma deficiência já atende a esse critério, pois se configura como um caso especial.
  2. b) se não afetar a exploração normal da obra. Entendemos que as medidas adotadas pelas entidades autorizadas para controlar o acesso das obras apenas para os beneficiários que possuem o direito, conforme consta no próprio Decreto, já atenderá a esse requisito, pois não permitirá a circulação ampla da obra e, portanto, não afetará a sua exploração normal. Não se deve confundir o uso de um direito do usuário com uma violação do direito do autor que atrapalha o titular em sua exploração. Ademais, na maior parte dos casos, a exploração normal da obra está ligada ao formato convencional, que é o mercado de atuação principal das editoras. As pessoas cegas e com outras deficiências visuais não podem esperar a formação de um mercado editorial, que ainda é inexistente ou muito tímido, para ter o seu direito garantido.
  3. c) se não causar prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que esta regra não diz que os titulares são imunes a qualquer prejuízo; subentende-se que os titulares podem sim ter algum prejuízo pelo eventual exercício do direito dos usuários, contanto que esse prejuízo não seja injustificável. A FEBAB entende que o acesso amplo e irrestrito das pessoas cegas, dos deficientes visuais e das pessoas com outras dificuldades de leitura seja condição mais do que justificável para a implementação de uma limitação ao direito do autor.

Comissão Brasileira de Direitos Autorais e Acesso Aberto da FEBAB convida a todos os profissionais da informação e demais cidadãos interessados a participarem da consulta pública sobre o Decreto de regulamentação do Tratado de Marraqueche. É necessário o preenchimento do cadastro para incluir quaisquer contribuições:

cultura.gov.br/secult-abre-consulta-publica-para-regulamentacao-do-tratado-de-marraqueche/

Informe-se mais sobre o Tratado de Marraqueche:

PLANTÃO DE DÚVIDAScbda3@febab.org.br

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